sexta-feira, 1 de junho de 2012

Mo abriu o livro que estava em seu colo e começou a folhá-lo com o cenho franzido, como se procurasse em suas páginas o ouro que deveria extrair para Capricórnio.
- Cockerell, se alguém der um pio enquanto Língua Encantada estiver lendo, corte a língua do infeliz! - disse Capricórnio.
Cockerell tirou uma faca do cinto e olhou para a fileira de homens como se já procurasse a primeira vítima. Um silêncio sepulcral espalhou-se pela igreja pintada de vermelho, um silêncio tão grande que Meggie pensou ouvir Basta respirar atrás dela. Mas talvez fosse apenas seu próprio medo.
Os homens de Capricórnio, a jugar por seus rostos, também pareciam não estar se sentindo confortáveis na própria pele. Eles olhavam para Mo com um misto de hostilidade e temor. Meggie conseguia entender isso tranquilamente. Talvez fosse um deles o próximo a desaparecer no livro que Mo folheava tão indeciso. Será que Capricórnio havia lhes contado que isso podia acontecer? Será que ele próprio sabia? E se acontecesse o que Mo temia: que ela própria desaparecesse? Ou Elinor?
- Meggie! - ele sussurrou, como se tivesse ouvido seus pensamentos - Segure firme em mim, de algum jeito, está bem?
Meggie fez que sim e agarrou-se em seu pulôver com uma mão. Como se isso adiantasse!
- Acho que encontrei a passagem certa - disse Mo rompendo o silêncio.
Ele lançou um último olhar para Capricórnio, olhou mais uma vez para Elinor, deu um pigarro...e começou.

Tudo desapareceu. As paredes vermelhas da igreja, os rostos dos homens de Capricórnio e o próprio Capricórnio em sua cadeira. Havia apenas a voz de Mo e as imagens que as letras iam formando como um tapete num tear. Se fosse possível Meggie odiar Capricórnio ainda mais, ela teria odiado naquele momento. Afinal, ele era o único culpado pelo fato de Mo não ter lido para ela uma só vez em todos aqueles anos. Quantas coisas ele poderia tê-la feito ver com sua voz, que dava outro sabor a cada palavra e uma nova melodia a cada frase! O próprio Cockereell parecia ter se esquecido de sua faca e das línguas que deveria cortar, e escutava com atenção e de olhar ausente. Nariz Chato fitava o ar arrebatado, como se um navio pirata com as velas infladass viesse singrando diretamente por uma das janelas da igreja. Todos estavam calados.
Não se ouvia um som além da voz de Mo, que dava vida a letras e palavras.
Apenas uma pessoa parecia imune ao encanto. Com um ar inexpressivo, os olhos pálidos voltados para Mo, Capricórnio continuava sentado e esperava: pelo tilintar de moedas em meio aos sons harmoniosos das palavras, por pesados baús de madeira úmida, cheios de ouro e prata.
Mo não o fez esperar muito. Enquanto lia o que Jim Hawkins, o garoto que era só um pouco mais velho que Meggie, vira numa caverna escura durante suas terríveis aventuras, aconteceu:


Moedas de ouro, cunhadas com a efígie do rei George ou de um dos Luíses, dobrões, guinéus, moidores e cequins, as efíges de todos os reis da Europa no decorrer dos últimos cem anos, estranhas peças orientais, cujas inscrições pareciam um emaranhado de fios ou um pedaço de uma teia de aranha, moedas redondas, quadradas, moedas perfuradas no meio, como se houvessem sido usadas penduradas no pescoço - toda sorte de ouro cunhado parecia ter seu lugar naquela coleção, e eram tantas peças quantas as folhas do outono, de forma que tive dores nas costas de tanto que precisei me curvar, e meus dedos doíam de separá-las.


As criadas ainda estavam limpando as últimas migalhas das mesas quando de repente as moedas começaram a cair sobre a madeira lustrosa. As mulheres recuaram assustadas, soltaram os panos de limpeza e puseram as mãos na boca, enquanto as moedas pululavam aos seus pés, moedas douradas, prateadas, cor de cobre, repicavam no chão de pedra, amontoavam-se tilintantes sob bancos, mais e mais moedas. Algumas rolaram até o pé da escada. Os homens de Capricórnio levantaram-se sobressaltados, curvaram-se para pegar as pecinhas cintilantes que batiam em suas botas... e recolheram as mãos novamente. Nenhum deles ousou tocar no dinheiro enfeitiçado. Sim, o que era aquilo senão ouro feito de papel e tinta preta e do som de um voz humana?

Cornelia Funke, Coração de Tinta

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